CONTEXTO Os testes de função pulmonar (TFP) são frequentemente repetidos para julgar se potenciais alterações, espontaneamente ou após o tratamento, excedem a variabilidade dos testes ou os efeitos do envelhecimento.(1) Embora haja pontos de corte para alterações “significativas” ao longo do tempo (Tabela 1), avaliar sua relevância clínica é substancialmente mais complexo. O examinador também deve considerar os efeitos intervenientes das complicações da doença, comorbidades, cirurgia torácica e alterações do peso corporal.
VISÃO GERAL Um homem de 76 anos com fibrose pulmonar intersticial leve (“paciente A”), mas com piora da dispneia, realizou TFP 4 meses depois da última avaliação. A CVF e a CPT diminuíram em ≈12%, suscitando a hipótese de progressão da doença. O volume alveolar (VA), entretanto, diminuiu com a CPT (a relação VA/CPT permaneceu ≈0,9). Como a DLCO variou minimamente (−3%), o coeficiente de transferência de monóxido de carbono (KCO) — DLCO/VA — aumentou de 89% do previsto para 148% do previsto, indicando restrição extraparenquimatosa. Foi confirmada a presença de fraqueza muscular inspiratória grave, e investigações adicionais revelaram doença dos neurônios motores.(2)
Um menino de 10 anos com fibrose cística (“paciente B”) apresentou quedas “significativas” recorrentes da CVF e, consequentemente, do VEF1 (de até 24%), indicativas de piora do aprisionamento gasoso. Após a estabilização, ocorreu nova redução acentuada de ambos os parâmetros, o que levou o examinador a sugerir que se tratava de outra exacerbação. Sem que ele soubesse, porém, o paciente havia desenvolvido derrame pleural transudativo bilateral causado por hipoproteinemia e que resultou em diminuição da CPT.
Uma mulher de 55 anos com asma grave (“paciente C”) apresentou redução da CVF e do VEF1 ao longo de um ano de acompanhamento. Os resultados levaram a mudanças no tratamento, com consequências deletérias para a dispneia. A pletismografia revelou pequenas reduções da capacidade residual funcional (CRF) e VR, além de uma grande redução da CPT; vale notar que o IMC havia aumentado de 38,7 kg/m2 para 47,9 kg/m2. O teste de exercício cardiopulmonar revelou alterações consistentes com obesidade mórbida.(3)
Avaliar alterações em TFP é frequentemente mais valioso clinicamente do que fazer uma única comparação com os valores previstos. As fontes de confusão, entretanto, são múltiplas.(4) Pode haver confusão, por exemplo, quando diversos parâmetros são acompanhados, pois alguns deles podem indicar piora apenas por acaso (falsos positivos). O VEF1 é possivelmente o mais confiável dos parâmetros porque diminui em doenças obstrutivas e restritivas. No entanto, em um paciente com doença obstrutiva, o VEF1 pode diminuir por causa dos efeitos de restrição incidente (“paciente B”) e vice-versa. Além disso, grandes flutuações do VEF1 ao longo do tempo são típicas da asma. É possível que o VEF1 por si só não seja suficiente para revelar reduções clinicamente relevantes dos volumes pulmonares e da eficiência das trocas gasosas.(5) Estabelecer se a taxa de declínio do VEF1 na DPOC está acelerada ou não é ainda mais desafiador por causa das taxas altamente variáveis. Dos volumes pulmonares, a CRF é o que menos varia ao longo do tempo (± 10%), mas é extremamente sensível a aumentos do IMC (“paciente C”).
MENSAGEM CLÍNICA É fundamental estabelecer a diferença entre significância estatística e significância clínica para interpretar corretamente TFP longitudinais. Se um parâmetro reprodutível (como o VEF1 ou a CVF) apresentar alteração acima do limite de variabilidade natural (Tabela 1), sua relevância prática deve ser avaliada à luz das informações clínicas. Reduções “não significativas” podem se somar em testes sequenciais e resultar em decrementos relevantes que são mais bem apreciados quando os valores individuais são analisados em função do tempo. Na maioria das circunstâncias, é mais provável que uma alteração de fato tenha ocorrido quando mais de duas mensurações sequenciais a demonstram.
REFERÊNCIAS 1. Pellegrino R, Viegi G, Brusasco V, Crapo RO, Burgos F, Casaburi R, et al. Interpretative strategies for lung function tests. Eur Respir J. 2005;26(5):948-968. https://doi.org/10.1183/09031936.05.00035205
2. Neder JA, Berton DC, O’Donnell DE. Pitfalls in the interpretation of pulmonary function tests in neuromuscular disease. J Bras Pneumol. 2020;46(4):e20200352. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20200352
3. Neder JA, Berton DC, O’Donnell DE. Obesity: how pulmonary function tests may let us down. J Bras Pneumol. 2020;46(3):e20200116. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20200116
4. Kohansal R, Soriano JB, Agusti A. Investigating the natural history of lung function: facts, pitfalls, and opportunities. Chest. 2009;135(5):1330-1341. https://doi.org/10.1378/chest.08-1750
Neder JA, Berton DC, O’Donnell DE. Integrating measurements of pulmonary gas exchange to answer clinically relevant questions. J Bras Pneumol. 2020;46(1):e20200019. https://doi.org/10.1590/1806-3713/e20200019