Continuous and bimonthly publication
ISSN (on-line): 1806-3756

Licença Creative Commons
2200
Views
Back to summary
Open Access Peer-Reviewed
Artigo Original

Alterações da função pulmonar em adolescentes com transtornos relacionados ao uso de substâncias: estudo exploratório

Changes in lung function in adolescents with substance use disorders: an exploratory study

Daniela Benvenutti Kaiber1, João Henrique Chrusciel1, Maiara Martins1, Bernardo Mattos1, Miguel Gomes1, Luis Eduardo Wearick-Silva2, Márcio Vinícius Fagundes Donadio3,4, Frederico Friedrich1,5, Marcus Herbert Jones1,5, Thiago Wendt Viola1

DOI: https://dx.doi.org/10.36416/1806-3756/e20230274

ABSTRACT

Objective: To compare lung function between adolescents with and without substance use disorder (SUD). Methods: This was an observational, cross-sectional exploratory study. The sample consisted of 16 adolescents with SUD and 24 age-matched healthy controls. The adolescents in the clinical group were recruited from a psychiatric inpatient unit for detoxification and rehabilitation; their primary diagnosis was SUD related to marijuana, cocaine, or polysubstance use. Questionnaires and pulmonary function tests were applied for clinical evaluation. Results: We found that FVC, FEV1, and their percentages of the predicted values were significantly lower in the adolescents with SUD than in those without. Those differences remained significant after adjustment for BMI and the effects of high levels of physical activity. The largest effect size (Cohen's d = 1.82) was found for FVC as a percentage of the predicted value (FVC%), which was, on average, 17.95% lower in the SUD group. In addition, the years of regular use of smoked substances (tobacco, marijuana, and crack cocaine) correlated negatively with the FVC%. Conclusions: This exploratory study is innovative in that it demonstrates the early consequences of smoked substance use for the lung health of adolescents with SUD.

Keywords: Adolescent; Substance-related disorders; Lung/physiopathology; Respiratory tract diseases/etiology; Cocaine; Cannabis.

RESUMO

Objetivo: Comparar a função pulmonar de adolescentes com e sem transtornos relacionados ao uso de substâncias (TUS). Métodos: Trata-se de um estudo exploratório transversal observacional. A amostra foi composta por 16 adolescentes com TUS e 24 controles saudáveis emparelhados pela idade. Os adolescentes do grupo clínico foram recrutados em uma unidade de internação psiquiátrica para desintoxicação e reabilitação; seu diagnóstico primário era o de TUS (maconha, cocaína ou polissubstâncias). Foram aplicados questionários e testes de função pulmonar para a avaliação clínica. Resultados: A CVF, o VEF1 e seus valores em porcentagem do previsto foram significativamente mais baixos nos adolescentes com TUS do que naqueles sem TUS. Essas diferenças permaneceram significativas após os ajustes para levar em conta o IMC e os efeitos de altos níveis de atividade física. O maior tamanho de efeito (d de Cohen = 1,82) foi o observado em relação à CVF em porcentagem do previsto (CVF%), que foi, em média, 17,95% menor no grupo TUS. Além disso, os anos de uso regular de substâncias fumadas (tabaco, maconha e crack) correlacionaram-se negativamente com a CVF%. Conclusões: Este estudo exploratório é inovador na medida em que demonstra as consequências precoces do uso de substâncias fumadas para a saúde pulmonar de adolescentes com TUS.

Palavras-chave: Adolescente; Transtornos relacionados ao uso de substâncias; Pulmão/fisiopatologia; Doenças respiratórias/etiologia; Cocaína; Cannabis.

INTRODUÇÃO
 
A experimentação de substâncias psicoativas, lícitas ou ilícitas, é frequente durante a adolescência. Dados epidemiológicos globais indicam que aproximadamente 20% dos indivíduos de 16-24 anos relatam o uso de pelo menos uma droga ilegal no último ano.(1) Estima-se também que 19,33% dos adolescentes de 13-15 anos já sejam fumantes de cigarros, o que é alarmante.(2) Além disso, dados provenientes dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (EUA) indicam uma prevalência igualmente alta (17,6%) de uso de tabaco durante a transição da adolescência para a idade adulta (dos 18 aos 24 anos de idade).(3) Nos últimos anos, também houve um aumento das taxas estimadas de uso de maconha entre adolescentes.(4,5)
 
Existe uma relação entre os padrões iniciais de uso de substâncias e uma maior probabilidade de apresentar transtornos relacionados ao uso de substâncias (TUS).(6) Indivíduos com TUS apresentam um padrão compulsivo persistente de uso de substâncias, que leva a prejuízos significativos em vários aspectos de sua vida, incluindo a saúde física e mental, relacionamentos e funcionamento diário. Embora os TUS sejam uma questão de saúde pública importante em todo o mundo, particularmente no que diz respeito às consequências para a saúde mental, pouco se sabe sobre seus efeitos na função respiratória e pulmonar da população adolescente.(7)
 
Há relatos de que o uso prolongado de substâncias psicoativas inalatórias tem efeitos pulmonares adversos como inflamação brônquica,(8) lesão pulmonar aguda e DPOC.(7,9) Estudos sugerem que fumar crack resulta em múltiplas alterações pulmonares,(10) incluindo lesões pulmonares que podem ser agravadas pela toxicidade causada por um padrão de uso de polissubstâncias que frequentemente ocorre em pessoas com problemas relacionados ao uso de cocaína.(11) Há também evidências que sugerem que a maioria dos usuários de heroína apresenta algum grau de obstrução das vias aéreas e que a inalação frequente da substância é um dos fatores de risco de DPOC.(12,13) Há estudos nos quais o enfisema pulmonar e a asma apresentaram relação com o uso crônico de heroína(14,15) e crack.(16) No entanto, o comprometimento da função pulmonar, avaliado por exames como a espirometria, também é evidente após um período prolongado de uso de maconha, com VEF1 significativamente mais baixo.(9,17) Os testes de função pulmonar também mostram que as medidas associadas ao distúrbio ventilatório restritivo são 50% mais baixas em fumantes de heroína do que em fumantes de tabaco e não fumantes, e que a prevalência de DPOC em fumantes de heroína é alta.(14)
 
O impacto que fumar tabaco, maconha, crack e heroína tem na função pulmonar foi estudado principalmente em adultos, particularmente em usuários crônicos com histórico de consumo extenso. No entanto, ainda há uma lacuna significativa no conhecimento a respeito de como os TUS afetam os adolescentes e sua saúde pulmonar. Além disso, investigar essa faixa etária é relevante para identificar quais parâmetros espirométricos podem ser mais afetados pelo uso indevido precoce de substâncias. Portanto, o objetivo deste estudo foi comparar medidas de função pulmonar em adolescentes com e sem TUS. Nossos achados exploratórios podem caracterizar melhor as alterações pulmonares decorrentes do uso de substâncias ainda na adolescência.
 
MÉTODOS
 
Ética
 
O estudo foi realizado em conformidade com os princípios estabelecidos na Declaração de Helsinque. Antes de enviarmos o protocolo de pesquisa, incluindo os procedimentos do estudo e questionários, para a avaliação do comitê de ética e apreciação do projeto, solicitamos a aprovação da escola e do hospital. Obtivemos então do conselho de revisão institucional e dos comitês de ética apropriados o consentimento ético para todos os protocolos, de modo a confirmar que o estudo cumpriu as diretrizes nacionais e internacionais de pesquisa em seres humanos (números e datas de aprovação ética: 4.128.393 / 1º de julho de 2020; 5.223.468 / 3 de fevereiro de 2022). Os pais ou responsáveis e os próprios participantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido.
 
Desenho do estudo e procedimentos de amostragem
 
Trata-se de um estudo exploratório transversal observacional. A amostra, recrutada entre setembro de 2021 e dezembro de 2022, foi composta por 16 adolescentes com TUS e 24 controles saudáveis emparelhados pela idade. Os critérios de inclusão foram sexo masculino e idade entre 15 e 18 anos. Foram excluídos os indivíduos com transtornos psicóticos crônicos e os analfabetos, principalmente porque o analfabetismo e a psicose poderiam introduzir vieses no preenchimento dos questionários e na coleta de dados clínicos.
 
Os participantes do grupo TUS foram recrutados em uma unidade de internação psiquiátrica para desintoxicação de álcool e drogas em um hospital em Porto Alegre (RS). Ao longo de 21 dias de hospitalização, os participantes do grupo TUS foram atendidos por uma equipe multidisciplinar composta por clínicos, psiquiatras, psicólogos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, terapeutas ocupacionais e educadores físicos. Os pacientes também seguiram um plano alimentar, juntamente com um protocolo de medicação para a desintoxicação e o manejo dos sintomas de abstinência. O protocolo consistiu principalmente em clorpromazina (50-125 mg/dia). Em todos os participantes do grupo clínico, o diagnóstico principal era o de TUS (maconha, cocaína, crack ou uso de polissubstâncias). O diagnóstico foi confirmado por meio de uma avaliação psiquiátrica realizada em conformidade com os critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, quinta edição. É importante observar que nossos dados foram coletados durante a pandemia de COVID-19 e, portanto, todos os pacientes internados na unidade foram submetidos ao teste obrigatório de infecção por SARS-CoV-2. Nenhum dos pacientes incluídos em nosso estudo apresentava diagnóstico de COVID-19. Os participantes do grupo controle foram recrutados em escolas particulares em Porto Alegre (RS). Para determinar sua elegibilidade, aplicamos um questionário sobre o comportamento de uso de drogas. Nenhum dos participantes do grupo controle tinha histórico de uso regular de substâncias como álcool, tabaco, maconha e cocaína.
 
Dois questionários foram utilizados no estudo: um questionário sociodemográfico básico e a sexta versão da Addiction Severity Index (ASI-6, Escala de Gravidade de Dependência). O questionário sociodemográfico compreendeu os seguintes itens: escolaridade, idade, nível socioeconômico e frequência de atividade física; a definição de altos níveis de atividade física foi a prática de exercícios de intensidade moderada a alta mais de três vezes por semana durante pelo menos uma hora. A ASI-6 consiste em uma entrevista semiestruturada que avalia o histórico de uso de álcool e outras drogas, incluindo informações como idade de início, duração, frequência e quantidade de consumo.(18) É considerado um ano de uso regular aquele durante o qual uma substância é usada pelo menos três vezes por semana. Analisamos dados referentes aos anos de uso regular de álcool, tabaco, maconha, cocaína e crack. Geramos uma variável adicional, isto é, anos de uso regular de substâncias fumadas, cujo cálculo foi feito com base na substância inalatória usada mais regularmente pelo participante (tabaco, maconha ou crack). Por exemplo, se o participante relatou cinco anos de uso regular de maconha e três anos de uso regular de tabaco, sua pontuação nessa variável foi de cinco anos. Além disso, todas as variáveis referentes aos anos de consumo regular foram ajustadas pela idade dos participantes por meio do cálculo da relação entre os anos de consumo regular e a idade atual. Os prontuários médicos foram avaliados em busca de dados referentes ao uso de medicamentos e a doenças prévias. Verificamos os sinais vitais, o peso e a estatura, e calculamos o IMC, cujos dados foram padronizados em escores Z.
 
A espirometria foi realizada de acordo com os critérios de aceitabilidade e reprodutibilidade da American Thoracic Society/European Respiratory Society.(19) Todas as medições foram corrigidas de modo a levar em conta a pressão barométrica local e a temperatura no dia dos testes. O peso e a estatura iniciais foram mensurados por meio de uma balança e uma fita métrica. Os testes foram realizados individualmente, com os participantes em pé, sem clipe nasal e com um espirômetro KOKO (Longmont, CO, EUA). Os parâmetros avaliados foram CVF, VEF1, relação VEF1/CVF e FEF25-75%. Para que os resultados possam ser visualizados melhor, os parâmetros espirométricos estão expressos em valores absolutos e em porcentagens dos valores previstos por equações internacionais de referência.(20) No grupo TUS, a espirometria foi realizada na segunda semana de desintoxicação, para evitar os efeitos da abstinência aguda.
 
Análise estatística
 
As variáveis quantitativas foram testadas quanto à distribuição dos dados, e não foram encontradas evidências de não normalidade. Portanto, as variáveis quantitativas estão expressas em forma de médias e desvios padrão. O teste de Shapiro-Wilk foi escolhido para a análise da normalidade da distribuição dos dados porque é mais adequado para amostras pequenas. As variáveis qualitativas estão expressas em forma de valores absolutos e porcentagens. Os grupos foram comparados por meio do teste t para amostras independentes. O tamanho do efeito para os testes t foi estimado por meio do cálculo do d de Cohen, que classifica o tamanho do efeito em pequeno (0,2-0,4), médio (0,5-07) e grande (≥ 0,8), particularmente para medidas espirométricas. As variáveis qualitativas foram comparadas entre os grupos por meio do teste do qui-quadrado. No caso de variáveis espirométricas com diferenças significativas entre os grupos, realizamos a análise de covariância (ANCOVA), ajustada de modo a levar em conta possíveis fatores de confusão. Para avaliar possíveis associações entre dados espirométricos e dados clínicos, realizamos uma análise de correlação de Spearman restrita ao grupo TUS. Todas as análises foram realizadas por meio do programa SPSS Statistics, versão 17.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, EUA). Valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significativos.
 
RESULTADOS
 
A Tabela 1 apresenta as características demográficas e clínicas da amostra. Observamos que os grupos não diferiram quanto à idade, IMC, estatura ou peso, embora a proporção de indivíduos com alto nível de atividade física tenha sido maior no grupo controle, assim como o foi a proporção de indivíduos com renda familiar mensal alta (> R$ 5.000). A proporção de indivíduos com renda familiar mensal baixa (< R$ 1.000) foi maior no grupo TUS. Além disso, observamos diferenças quanto à escolaridade; a média de anos de escolaridade foi maior no grupo controle do que no grupo TUS.
 

 
Quanto aos anos de uso de substâncias no grupo TUS, o tabaco e a maconha foram as substâncias usadas por mais tempo (aproximadamente três anos de uso regular). Quanto aos anos de uso regular de substâncias fumadas calculados por nós, a média foi de aproximadamente quatro anos. Para cada participante do grupo TUS, calculamos também a relação entre os anos de consumo regular de cada substância e a idade atual. As médias foram as seguintes: 2,75 ± 7,5 para uso regular de álcool ao longo da vida; 22,8 ± 18,8 para uso regular de tabaco ao longo da vida; 23,1 ± 15,4 para uso regular de maconha ao longo da vida; 16,1 ± 15,4 para uso regular de cocaína ao longo da vida; 3,75 ± 7,6 para uso regular de crack ao longo da vida; e 27,1 ± 17,4 para uso regular de qualquer substância fumada ao longo da vida.
 
Espirometria
 
Ao comparar os dados referentes à função pulmonar (Tabela 2), observamos que a CVF absoluta, a CVF em porcentagem do valor previsto (CVF%) e o VEF1 em porcentagem do valor previsto (VEF1%) foram significativamente mais baixos no grupo TUS do que no grupo controle. A relação VEF1/CVF absoluta foi significativamente maior no grupo TUS do que no grupo controle. O tamanho do efeito variou de pequeno a grande. O maior tamanho de efeito foi o observado em relação à CVF%, correspondendo à diferença mais significativa entre os dois grupos: 17,95% menor no grupo TUS. Não observamos diferenças significativas entre os dois grupos quanto ao VEF1 absoluto, relação VEF1/CVF em porcentagem do valor previsto, FEF25-75% absoluto ou FEF25-75% em porcentagem do valor previsto.
 

 
Utilizamos a ANCOVA para determinar se o efeito de grupo em parâmetros específicos da função pulmonar persistiu mesmo após os ajustes para levar em conta as influências do IMC e de um alto nível de atividade física. Os efeitos significativos de grupo persistiram em todas as variáveis: CVF absoluta (F = 6,67, p = 0,014); CVF% (F = 10,80, p = 0,002); VEF1% (F = 5,60, p = 0,023); e relação VEF1/CVF absoluta (F = 5,74, p = 0,022). O IMC também teve efeito significativo (p < 0,05) nas ANCOVA referentes às duas variáveis de CVF (CVF e CVF%). Não foram observados efeitos significativos na variável alto nível de atividade física.
 
Por fim, realizamos análises de correlação restritas aos dados provenientes do grupo TUS, para determinar se a idade, IMC, estatura, peso, dose de clorpromazina e anos de uso de substâncias correlacionavam-se com as medidas de função pulmonar (Tabela 3). Observamos que o IMC correlacionou-se positivamente com a CVF absoluta, a CVF% e a relação VEF1/CVF absoluta. A relação anos de uso regular de substâncias fumadas/idade correlacionou-se negativamente com a CVF%. Nenhum dos parâmetros espirométricos se correlacionou significativamente com a idade, estatura, peso, dose de clorpromazina ou relação anos de consumo regular/idade de tabaco, maconha, cocaína, crack ou álcool.
 

 
Levando em consideração a correlação positiva entre o IMC e as variáveis espirométricas, repetimos essa análise em toda a nossa amostra, inclusive no grupo controle. Essa segunda análise não mostrou nenhuma associação significativa entre o IMC e as variáveis espirométricas (p > 0,05 para todas).
 
DISCUSSÃO
 
Este estudo comparou a função pulmonar de adolescentes com e sem TUS. Observamos diferenças em medidas específicas de CVF e VEF1, em seus valores em porcentagem do previsto e na relação VEF1/CVF. Essas alterações permaneceram significativas após os ajustes para levar em conta os efeitos de covariáveis como IMC e nível de atividade física. O maior tamanho de efeito foi o observado em relação à CVF%, sugerindo que adolescentes com TUS têm menos ar que possa ser expirado com força. Além disso, os anos de uso regular de substâncias fumadas correlacionaram-se negativamente com a CVF%. Este estudo exploratório é inovador na medida em que demonstra as consequências pulmonares precoces de TUS em uma população adolescente, cuja trajetória de uso crônico de substâncias ainda está em progresso. Embora tenhamos observado menor função pulmonar no grupo TUS, vale ressaltar que as porcentagens dos valores previstos para os parâmetros espirométricos CVF e VEF1 estiveram dentro da faixa de normalidade (acima de 80%) em ambos os grupos, o que sugere que não há comprometimento funcional pulmonar associado a TUS durante a adolescência. Não obstante, nosso estudo corrobora parcialmente o crescente conjunto de evidências que mostram uma perda clinicamente relevante da função pulmonar relacionada ao fumo crônico de tabaco, maconha, crack e heroína.
 
Há evidências crescentes de que o uso de maconha pode promover alterações pulmonares associadas à DPOC, mais comumente caracterizadas por reduções do VEF1 e da CVF.(21,22) O uso recorrente de maconha com tabaco aumenta as alterações e o comprometimento pulmonar, avaliados pelos testes de função pulmonar. Isso ocorre porque o cigarro é fumado com mais frequência do que a maconha, especialmente por adultos.(22) No caso da associação entre maconha e DPOC, dados indicam que indivíduos que fumam maconha e tabaco têm duas vezes mais chances de apresentar sintomas respiratórios graves da doença. (23,24) Esses achados são relevantes em virtude do perfil de nossa amostra clínica, na qual o tabaco e a maconha foram as substâncias consumidas mais comumente e por mais tempo.(24) Além disso, em virtude dos mecanismos de lesão potencializados pela toxicidade das substâncias, seu uso regular pode piorar a apresentação clínica de doenças pulmonares como a asma e a DPOC.(25,26) Por exemplo, evidências sugerem que o uso de cocaína exacerba a asma, além de aumentar a gravidade dos sintomas e o tempo de internação hospitalar por doença pulmonar.(27)
 
Não observamos associações entre parâmetros espirométricos e os anos de fumo regular de tabaco, maconha ou crack, tampouco entre parâmetros espirométricos e o uso regular de substâncias não fumadas, tais como o álcool e a cocaína. Esses achados devem ser interpretados com cautela, levando-se em conta o pequeno tamanho de nossa amostra. No entanto, ao estimar uma variável que considerava o uso prolongado de maconha, crack ou tabaco, observamos uma correlação inversa entre anos de uso regular e CVF%. Esse achado corrobora parcialmente os resultados de um estudo de coorte realizado por Sherrill et al., que mostraram reduções progressivas do VEF1 e da relação VEF1/CVF em fumantes de maconha durante um período de acompanhamento de seis anos, o que sugere que a substância está associada a um declínio contínuo da função pulmonar ao longo dos anos, que pode se acelerar no caso de tabagismo concomitante.(28)
 
Nosso estudo tem limitações significativas. Primeiro, a amostra foi pequena e o estudo foi exploratório. No entanto, se levarmos em conta que poucos estudos investigaram a função pulmonar de adolescentes com TUS, contribuímos para expandir um campo pouco explorado. Segundo, os participantes do grupo TUS haviam sido admitidos em um programa de tratamento de desintoxicação, que incluía a prescrição de psicotrópicos, especialmente a clorpromazina. Não obstante, nossas análises de correlação entre a dose de clorpromazina e as variáveis espirométricas não revelaram associações significativas. Terceiro, observamos diferenças significativas quanto a indicadores socioeconômicos como escolaridade e renda familiar, o que sugere que há grandes diferenças entre adolescentes com e sem TUS quanto à trajetória de vida, história familiar e fatores psicossociais. No entanto, muitos estudos indicam que pobreza, baixa escolaridade e outros marcadores de vulnerabilidade social são fatores de risco de TUS,(29,30) o que tornou mais difícil emparelhar o grupo TUS com um grupo de referência saudável composto por pares socioeconômicos. Quarto, como os TUS eram o principal problema de saúde dos pacientes, não se realizou nenhuma avaliação clínica pulmonar durante o programa de tratamento. Por último, os adolescentes com TUS incluídos no estudo foram recrutados em um grupo de pacientes internados e, portanto, foram representativos de adolescentes com doença relativamente grave.
 
Apesar das limitações, nosso estudo sugere que a função pulmonar está comprometida em adolescentes com TUS. Portanto, os clínicos precisam estar atentos ao histórico de uso de substâncias em pacientes com alterações nas vias aéreas, e nossos dados sugerem que alterações na função pulmonar podem começar na adolescência. Estudos futuros com menos limitações poderão gerar evidências mais robustas sobre alterações pulmonares nessa população e sugerir caminhos para a aplicabilidade clínica desses achados.
 
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES
 
DBK: redação do manuscrito. DBK, MM, MG e LEWS: coleta de dados. JHC: curadoria dos dados. JHC, MM, MG, LEWS, MVFD, FF, MHJ e TWV: revisão do manuscrito. MVFD, MHJ e TWV: desenho do estudo. FF: análise dos dados. TWV: supervisão. Todos os autores leram e aprovaram a versão final do manuscrito.
 
CONFLITOS DE INTERESSE
 
Nenhum declarado.
 
REFERÊNCIAS
 
1. NHS Digital [homepage on the Internet]. London: National Health Service [updated 2018 Feb 18; cited 2023 Aug 1]. Statistics on drug misuse: England, 2018. Available from: https://digital.nhs.uk/data-and-information/publications/statistical/statistics-on-drug-misuse/2018
2. Nazir MA, Al-Ansari A, Abbasi N, Almas K. Global Prevalence of Tobacco Use in Adolescents and Its Adverse Oral Health Consequences. Open Access Maced J Med Sci. 2019;7(21):3659-3666. https://doi.org/10.3889/oamjms.2019.542
3. Cornelius ME, Loretan CG, Wang TW, Jamal A, Homa DM. Tobacco Product Use Among Adults - United States, 2020. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2022;71(11):397-405. https://doi.org/10.15585/mmwr.mm7111a1
4. Kandel D, Yamaguchi K. From beer to crack: developmental patterns of drug involvement. Am J Public Health. 1993;83(6):851-855. https://doi.org/10.2105/AJPH.83.6.851
5. Lim CCW, Sun T, Leung J, Chung JYC, Gartner C, Connor J, et al. Prevalence of Adolescent Cannabis Vaping: A Systematic Review and Meta-analysis of US and Canadian Studies. JAMA Pediatr. 2022;176(1):42-51. https://doi.org/10.1001/jamapediatrics.2021.4102
6. Khurana A, Romer D, Betancourt LM, Brodsky NL, Giannetta JM, Hurt H. Experimentation versus progression in adolescent drug use: A test of an emerging neurobehavioral imbalance model. Dev Psychopathol. 2015;27(3):901-913. https://doi.org/10.1017/S0954579414000765
7. Mégarbane B, Chevillard L. The large spectrum of pulmonary complications following illicit drug use: features and mechanisms. Chem Biol Interact. 2013;206(3):444-451. https://doi.org/10.1016/j.cbi.2013.10.011
8. Ghasemiesfe M, Ravi D, Vali M, Korenstein D, Arjomandi M, Frank J, et al. Marijuana Use, Respiratory Symptoms, and Pulmonary Function: A Systematic Review and Meta-analysis. Ann Intern Med. 2018;169(2):106-115. https://doi.org/10.7326/M18-0522
9. Wolff AJ, O’Donnell AE. Pulmonary effects of illicit drug use. Clin Chest Med. 2004;25(1):203-216. https://doi.org/10.1016/S0272-5231(03)00137-0
10. Almeida RR, Zanetti G, Souza AS Jr, Souza LS, Silva JL, Escuissato DL, et al. Cocaine-induced pulmonary changes: HRCT findings. J Bras Pneumol. 2015;41(4):323-330. https://doi.org/10.1590/S1806-37132015000000025
11. Tashkin DP. Airway effects of marijuana, cocaine, and other inhaled illicit agents. Curr Opin Pulm Med. 2001;7(2):43-61. https://doi.org/10.1097/00063198-200103000-00001
12. Samoedro E, Yunus F, Antariksa B, Nurwidya F. Spirometry findings among drug users in the Indonesian National Narcotics and illicit drug Bureau Rehabilitation Center. J Nat Sci Biol Med. 2017;8(1):69-74. https://doi.org/10.4103/0976-9668.198353
13. Drummond MB, Kirk GD, Ricketts EP, McCormack MC, Hague JC, McDyer JF, et al. Cross sectional analysis of respiratory symptoms in an injection drug user cohort: the impact of obstructive lung disease and HIV. BMC Pulm Med. 2010;10:27. https://doi.org/10.1186/1471-2466-10-27
14. Nightingale R, Mortimer K, Giorgi E, Walker PP, Stolbrink M, Byrne T, et al. Screening Heroin Smokers Attending Community Drug Clinics for Change in Lung Function: A Cohort Study. Chest. 2020;157(3):558-565. https://doi.org/10.1016/j.chest.2019.11.006
15. Buster M, Rook L, van Brussel GH, van Ree J, van den Brink W. Chasing the dragon, related to the impaired lung function among heroin users. Drug Alcohol Depend. 2002;68(2):221-228. https://doi.org/10.1016/S0376-8716(02)00193-X
16. Self TH, Shah SP, March KL, Sands CW. Asthma associated with the use of cocaine, heroin, and marijuana: A review of the evidence. J Asthma. 2017;54(7):714-722. https://doi.org/10.1080/02770903.2016.1259420
17. Tashkin DP. Airway effects of marijuana, cocaine, and other inhaled illicit agents. Curr Opin Pulm Med 2001; 7: 43-61. https://doi.org/10.1097/00063198-200103000-00001
18. Kessler F, Cacciola J, Alterman A, Faller S, Souza-Formigoni ML, Cruz MS, et al. Psychometric properties of the sixth version of the Addiction Severity Index (ASI-6) in Brazil. Braz J Psychiatry. 2012;34(1):24-33. https://doi.org/10.1590/S1516-44462012000100006
19. Miller MR, Hankinson J, Brusasco V, Burgos F, Casaburi R, Coates A, et al. Standardisation of spirometry. Eur Respir J. 2005;26(2):319-338. https://doi.org/10.1183/09031936.05.00034805
20. Quanjer PH, Stanojevic S, Cole TJ, Baur X, Hall GL, Culver BH, et al. Multi-ethnic reference values for spirometry for the 3-95-yr age range: the global lung function 2012 equations. Eur Respir J. 2012;40(6):1324-1343. https://doi.org/10.1183/09031936.00080312
21. Gates P, Jaffe A, Copeland J. Cannabis smoking and respiratory health: consideration of the literature. Respirology. 2014;19(5):655-662. https://doi.org/10.1111/resp.12298
22. Morris MA, Jacobson SR, Kinney GL, Tashkin DP, Woodruff PG, Hoffman EA, et al. Marijuana Use Associations with Pulmonary Symptoms and Function in Tobacco Smokers Enrolled in the Subpopulations and Intermediate Outcome Measures in COPD Study (SPIROMICS). Chronic Obstr Pulm Dis. 2018;5(1):46-56. https://doi.org/10.15326/jcopdf.5.1.2017.0141
23. Tan WC, Lo C, Jong A, Xing L, Fitzgerald MJ, Vollmer WM, et al. Marijuana and chronic obstructive lung disease: a population-based study. CMAJ. 2009;180(8):814-820. https://doi.org/10.1503/cmaj.081040
24. Taylor DR, Fergusson DM, Milne BJ, Horwood LJ, Moffitt TE, Sears MR, et al. A longitudinal study of the effects of tobacco and cannabis exposure on lung function in young adults. Addiction. 2002;97(8):1055-1061. https://doi.org/10.1046/j.1360-0443.2002.00169.x
25. Ribeiro LI, Ind PW. Effect of cannabis smoking on lung function and respiratory symptoms: a structured literature review. NPJ Prim Care Respir Med. 2016;26:16071. https://doi.org/10.1038/npjpcrm.2016.71
26. Mustafaoglu R, Gorek Dilektaslı A, Demir R, Zirek E, Birinci T, Kaya Mutlu E, et al. Exercise capacity, lung and respiratory muscle function in substance use disorders [published online ahead of print, 2022 Jan 31]. Pulmonology. 2022;S2531-0437(22)00006-X. https://doi.org/10.1016/j.pulmoe.2021.12.009
27. Rome LA, Lippmann ML, Dalsey WC, Taggart P, Pomerantz S. Prevalence of cocaine use and its impact on asthma exacerbation in an urban population. Chest. 2000;117(5):1324-1329. https://doi.org/10.1378/chest.117.5.1324
28. Sherrill DL, Krzyzanowski M, Bloom JW, Lebowitz MD. Respiratory effects of non-tobacco cigarettes: a longitudinal study in general population. Int J Epidemiol. 1991;20(1):132-137. https://doi.org/10.1093/ije/20.1.132
29. Afifi TO, Henriksen CA, Asmundson GJ, Sareen J. Childhood maltreatment and substance use disorders among men and women in a nationally representative sample. Can J Psychiatry. 2012;57(11):677-686. https://doi.org/10.1177/070674371205701105
30. Andersen SL, Teicher MH. Desperately driven and no brakes: developmental stress exposure and subsequent risk for substance abuse. Neurosci Biobehav Rev. 2009;33(4):516-524. https://doi.org/10.1016/j.neubiorev.2008.09.009

Indexes

Development by:

© All rights reserved 2024 - Jornal Brasileiro de Pneumologia